29.7.06

Réquiem inacabado.

Rosena tinha o peito doído, remédio algum aplacava, Viuvão assim mesmo insistiu Deixa eu ajudar você, Rosena. Nessa hora doída Rosena dizia Sou filha de tarântula. Rosena picada de aranha e cobra. Rosena esculpida dentro de mim.Vejo-a assim um sumo de cedro escorrendo, passos fortes sobre o chão, veludo macio de saia esfregando o calor da coxa suada. Rosena pegava o bandolim e gritava coisas altas de paixão. Viuvão acudia balançando sais, o domingo hoje se estica feito elástico e couro de tatu, quem pintou essa estrela mais rubra?! Quem estendeu essa escada para o Céu?!! Juro que não pintei aquela nuvem, não fui eu, mas queria tanto ter feito, ah! É sempre o vento artesão.
Os descendentes hoje se reúnem, sonham motivos, forjam mentiras, inventam circunstâncias. Fazem dela o que bem querem. Não pode mesmo ser de outra forma. A boca enorme de Rosena está fechada para sempre. Não pode mais sorrir, reclamar de injustiça. Rosena está profundamente calada desde a crise de apendicite do carnaval de 1929. Hibernou, virou retrato. Está perpetuada no Museu da Imagem e do Som. Introduziu sons dodecafônicos no bandolim, enfeitou nossa árvore de mulheres. Mas na casa de Armanda é assunto que não pode ser tocado. Você puxou a avó, desgramada. Quem? Eu?????
Não há trégua. Igualzinha. É quando fazemos das nossas, chegamos ávidas, disfarçando, rondamos a galeria dos parentes com um ar sonso excitado. Queremos nos eximir? Culpá-la? Hoje quero adorá-la. Desenterrá-la com desvelo, sem desmanchar seus pecados. Quem tirou este retrato? Vocês não têm outro assunto?? Fui eu.
Queria ter sido. Rosena cavalgou nua na chuva, viveu na casa grande envidraçada que se entortava na ilha feito uma centopéia. Um dia ela e a filha encontraram perto da entrada o bicho cheio de pernas, Aninha era pequena, se agacharam e olharam, Rosena explicou abrindo a saia É assim uma coisa esquisita cheia de perna e desejo, feito mulher, minha filha, feito nós duas e todas. Aninha repetiu no colégio, vieram reclamar. Dêem-se ao respeito, senhores! Viuvão defendeu. Minha mulher é uma artista! Os filhos cresceram admirando. Tanto amor, tanta paixão. Por que nossa geração a perdeu? Não adianta olhar pro outro lado. Estou falando com você. Quantos anos será que ela tinha? Viuvão não podia saber, ela escondeu sempre a idade, talvez fosse mais velha que ele, tanta dama criada por governanta francesa na Capital da República, Viuvão escolheu a dos olhos. De onde será que ela veio? Filha de cigano? Era bruxa? Nunca vi olhos dessa cor, de orquídea da duna, violeta, alguém mexeu nesse aqui. Em mim também. Vão esconder até quando? Pra que tantas perguntas inúteis?!! Ninguém vai poder responder! Estas malucas fazem o que bem entendem com a história! Querem ser igual a Rosena. Se soubessem! Se soubessem! Coitado do bisavô. Armanda anda sem parar, bate nervosa o tapete, que vergonha, meu Deus, quanta dúvida grudada, terroristas, safadas, diabo de sangue mais forte, Armanda bufa, estremece, parece que reza Livrai-nos Senhor da fúria dos genes Amém. Acaricio o retrato, tanta dívida tecida. Alguém marcou esse esse aqui com o dedo. Vocês não lavam a mão antes de mexer em retrato??? Gente mais mal educada! Me marcaram com uma tatuagem na alma. Pronto. Ninguém mais mexe no álbum, vou trancar. Eu abri e gostei. Uma coisa assim esquisita cheia de perna e desejo, feito nós duas, Aninha, feito elas também e mais todas. Mesmo assim ainda não posso morrer. Quero mais.
Vocês roubaram uns retratos! Cadê? Onde está o bandolim da vó?! Eu quero tanto ele pra mim!!
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imagem:

12.7.06

Esta flor não pode ser deste planeta.

Ela furou com um palito os últimos pães, desligou o forno, foi até o lavabo, desistiu. Tinha suado um pouco na cozinha mas não retocou a maquiagem. Havia uma espécie de pacto entre eles de se encontrarem sem retoques, sem edição, sem cálculos, mínimos que fossem. Ele tinha dito que gostaria de descobrir no beijo daquela noite todos os sabores que ela tivesse provado antes dele. Ela achou nojento, escatológico, vulgar, mas concordou macia, sempre cedia assim nesse tom acostumado, mesmo quando brincava daquilo, ou principalmente quando.
Resignou-se ali na fresta.
Ele nem bateu à porta, empurrou e entrou, ela saía do lavabo e a porta atingiu-a em cheio na testa, ele nem viu que ela tinha se ferido, jogou-a no chão e apertou-a sob seu corpo gordo. Bruto, deve ter me quebrado umas três costelas. Ela descobriu o quanto estava infeliz, traída e empanturrada por relatórios ocos sobre sensualidade que ela e ele a si mesmos se impingiam achando-se irreverentes. Desta vez custou, a mentira já se esvaía, tola, pífia, bolha de sabão, esfacelava a cena, ele apertou-a mais ainda contra o tapete e o garfo que ela tinha deixado cair ali da pizza da noite anterior cutucou-a um pouco, ela sentiu a pressão do súbito tridente mas não conseguiu se mexer para se desvencilhar daquilo, então como num sonho a lembrança de Brando voltou à sua mente, ao seu coração, ao seu sexo triste, Brando era terno, forte também e terno, quando os dentes do garfo finalmente conseguiram furar seu moleton sangrando-lhe as costas o nome dele emergiu sem luta da garganta rouca e aguerrido aumentou seus lábios como nenhum botox ou outro fio de ouro ou batom de mentol assim jamais faria: Brando. Mas quem é Brando??? Ela não quis explicar nem sentiu culpa, ele praguejou alto até a rua, bateu a porta do carro com estrondo e a xingou. Foi delicioso. Ela se levantou vencida pela ternura antiga da lembrança súbita. Brando. Sentou-se sob as estrelas e viriam muitas noites e a certeza muda, quando a campainha tocou ela estremeceu, demorou-se um pouco numa estratégia perfumada, esperou que ele tocasse uma segunda vez e sofresse um pouco, mas ele poderia muito bem num gesto de elegância e amor-próprio não ousar uma segunda vez e jamais voltar e ela não saberia mais viver sem ele. Faiscou na porta. Abriu-a afogueada e encontrou-o ali, sereno, rindo, levantando do chão os jornais dos últimos dias que ela não tinha recolhido, segurava uma flor vermelha enrolada num celofane muito fino e poeticamente opaco, era mais um de seus enigmas. Brando era diferente de tudo o que já tinha visto. Esta flor não pode ser deste planeta, ela falou prevendo.
Se olhavam fundo, ela tirou um cisco invisível que ele escondia no suéter, não tinham feito qualquer pacto mas tudo era solene entre eles, sempre tinha sido, como que preparado há vidas. Alguma coisa começou a pulsar, a puxar prá perto, o estômago fazendo voltas já se inventavam um ao outro naquele desejo baio e já queriam se devorar. Me espere um pouco, ela pediu. Um pouco só. Mexeu nervosa na nécessaire, esfregou a pequena lua com um pouco de pasta de dente até ficar radiante, reluzente, linda, pendurou-a de novo no umbigo, o censor do piercing apenas confirmava o que ela praticamente já sabia. Quando voltou com aquele ar seguro e viu nos olhos dele uma certeza triunfante, sabia sem nenhuma dúvida que nunca, nunca diria o nome de outro homem no ouvido dele, não, não, jamais diria, aquele ato falho era impensável.
Projetaram-se leves para além do arco, caminhavam juntos para encontrar o ogro, a coruja, o escorpião de mil pernas, o olho de Deus, qualquer perigo, todas as alegrias. Que Lua é hoje? Um na frente do outro o raio interrompeu a frase, cortou com força de foice sua vogal mais brilhante, sua primeira declaração de amor. Riram e o susto suou devagar aquela rua do planeta e o destino se fazia ardente, craquelê, imponderável. Brando abriu a porta da nave e estendeu-lhe a mão, viajariam enfim de volta para o Azul. O Azul! O Azul!
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imagem: “Papavero nell'azzurro del cielo”..by palclaud2 ..Album: Evviva! Seppur in ritardo e' arrivata anche qui la primavera. The spring has come.. .."Used with permission from CNET Networks, Inc., Copyright 200_. All rights reserved."