23.9.06

epitáfio


Aqui jazo eu
Pó enfeitiçado
Que me embriaguei de Sol e de Lua
e não sei o que me virei.
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Nosso Ancestral é um rio azul, SP, Rio Azul, 2006.

3.9.06

Ele se lembrou de que há um dia em que os limites entre os mundos se esgarçam


Acordou sentindo a dor do mundo, do mundo inteiro embora seu coração estivesse preso do lado de dentro do muro vergonhoso. Olhou para os arredores em frangalhos e acariciou as lembranças do vilarejo, as casas bombardeadas dos parentes dos heróis, crianças correram esbaforidas e ele as reconheceu sem esforço, uma era ele mesmo, a pele ressecada e clareada pela areia na qual gostava de se enroscar como um cabrito com cócegas. A outra era Jade, a prima mais velha de olhos já brilhantes de uma futura explosão que espatifaria seu sorriso branco e o varreria para os quatro cantos. A outra era a pequena menina judia que por um poro do muro esburacado viu quando ele e a prima se roçaram. Se ele não se matasse e se ela chegasse a crescer, um dia ele e essa menina se apaixonariam e construiriam uma casa no lugar do muro.
Ele se agachou e aproximou o olho direito da pequena fenda. Antes de ver de novo a menina deu com um inseto engraçado que olhou prá ele com olhos minúsculos sonolentos. Eles pareciam se encaixar nas pupilas inquietas dos olhos da menina um pouco mais prá trás, eram dois pares de olhos saltados de curiosidade e susto, sonhos apertados e moléculas vivazes. Por fim se esconderam sob cílios negros que se agitavam como aranhas. A tarde palestina tinha um compasso metálico e traçava impiedosa circunferências fatídicas para os amores.
Ele se lembrou de que há um dia em que os limites entre os mundos se esgarçam, não se lembrou direito de quando seria, pensou que Alá permitiria que ele voltasse do Paraíso para encontrar-se com ela outra vez para rirem e dançarem num giro dervixe neste vão de muro que talvez seja o horizonte.
Olhou mais uma vez e a viu ao longe, ajustando a mochila nas costas e caminhando apressada, trágica e cansada demais para a idade, confundindo-se num instante com a fila tristonha do trânsito e sem saber se o futuro virá. Ele apertou o rosto no muro esmagando os olhos para tentar trazê-la de volta, espalmou a mão magra pelo poro do cimento que já era uma ferida grande e dolorida. Os dedos empoeirados fizeram um movimento desesperado empurrando os tijolos, depois desistiu e limpou as mãos nas roupas surradas.
Com os olhos do pequeno inseto e os da menina dentro das próprias órbitas, arredondou os ângulos sofridos dos quarteirões queridos e das lembranças de toda uma vida uma última terrena vez.
Decidido agachou-se e beijou a fenda no muro. Alguém tinha enfiado ali um pedaço de jornal amarfanhado mas entrava luz por uma fresta guerreira e ele enxergou, já pronto, coroando o seu destino, o turbante próximo iluminado de glória e de eternidade.
Abriu bem os olhos e apertou sem dó o botão da flor de todas as bombas bem em cima do seu jovem fígado apaixonado.
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imagem:Qalandia Check Point, Ramallah, Palestine. Auxcouleursavenir's Fotothing. http://www.fotothing.com/auxcouleursavenir/photo/2645e4edf211af4e3e11ffde8e160127/