17.4.09

Meus pedaços içados

Tudo escuro e aquilo no Céu, cheio de luz, redondo, espiando, Marlene amoleceu, despencou atrás da mureta vencida como uma folha de plátano cai, ficou toda arranhada, plantavam aquilo espinhudo pra espetar ladrão que pulasse, ela por acaso tinha culpa se aqui em São Paulo não tinha tido nunca tempo de olhar à noite para cima? O Sol Marlene via. Quando ia de dia lá fora nos fundos estender a cueca do Alaor. Falavam que não era bom olhar assim direto de frente para o Sol que estraga os olhos, mas ela gostava de olhar, depois de uns instantes olhando direto o Sol começava a girar bem depressa, uma sobrinha do Alaor disse que quem vê o Sol rodando assim rápido foi escolhido por Deus, é diferente, vidente, Nossa Senhora há de vir para uma pessoa assim santa e avisar de uma guerra que vai acabar com o mundo, ai meu Deus uma guerra final! Profecia,Torrinha! Antes do fim do mundo meu Deus, meu bom Deus meu Jesus me ajuda a voltar pra Torrinha, preciso agarrar minha mãe bem juntinho, procurar o meu pai, encontrar meus irmãos, conhecer mais parentes, rolar no gramado alegre antes da bomba estragar, sentir de novo na pele o orvalho e o mato que pica, se acabar abraçada com os patos. De lambuja, o amor. Ai, meu Deus. Escrava dos outros já era. Ia então morrer deste jeito? Sempre a vida inteira e somente empregada? Que vida mais besta eu tive na Terra, Alaor. Marlene entrava e o Sol ia junto, continuava na cabeça por baixo dos olhos, no fogão na geladeira na mesa na sala no quarto na parede na cara do Alaor, grudava em tudo, na jarra, duvido que a jarra tenha mesmo vindo do Minho, exibidos eles eram. A Lua Marlene só tinha visto de cabaça, escura assim não, Lua preta? Que Lua é esta, afinal? Marlene estendeu a manta no chão e deitou, pôs-se a espiar do vitrô o pedaço do Céu azul recortado, ela que viveu espremida, humilhada, impedida em cantos bem tristes nas casas dos outros, em becos de solidão, de cimento, timidez, desespero, umidade, abriu os olhos, sonhou, viajou pelo espaço cantando, a alma corrigindo o seu comprido degredo encheu-se de espanto e visões, fez amizade com andorinhas e com o silêncio mais fundo das nuvens em corcéis, passou a se esvaziar da fome da comida daquela casa de estranhos, deixava a porta aberta e a Lua entrava. Lua Lua Lua Marlene ia precisando só da Lua Lua Lua comia e bebia daqueles raios azuis, grãos de prata, agora sabia que podia se guiar por ela, distinguir suas caras, pedir direção. A África, Lua, onde é? Minha Nossa Senhora da Aparecida, minha Mãe Preta, me mostra onde é.
Marlene pressentiu que a rua era larga, quilômetros esperavam sua simples ousadia. Farejou Alaor bem vivo, dando volta no jardim, podia enxergar tudo sem acender vela ou lanterna, sem ter medo nem do medo, nem de mais nada, viu quando Alaor a cobiçou de cima da laje, seus dois olhos ardentes de gato tramando livre paciente, conversaram de longe só de prumo sem dizerem palavra; Perdizes, eu quero é a África, adeus. Nunca mais, nunca mais, nunca mais essa casa dos outros, só Deus!
Seguiam o rastro da Lua. Faróis acenderam mais olhos de gatos. Alaor abotoou no seu braço a pulseira e beijou: Pode usar, viu, Marlene, não é perigoso. Ninguém vai roubar. Não é de ouro. É latinha.
A noite ardia, com a pulseira feito aliança Marlene reluziu. África remota?! Já sei! Já sei o que é! Agora eu vou é ser negra, Alaor. Ah. E foi.
Marlene foi e o seu regaço era pura água da fonte, escorria. Mas antes de Alaor chegar com aquela boca enorme, aquela alma dele danada de perguntar sobre tudo o que ela tinha travado no peito desde sempre esperando, tudo o que até hoje nunca mais ninguém quis nem tampouco escutou, O que tem mesmo Torrinha, Marlene? Me conta do jardim, me fala dos patos. Do trono de Ginga, de Nena, bem morta no caminhão de laranjas tombado, me conta da imagem da santa partida, do lago, da bomba, do fim do mundo, do sonho. Torrinha...
Negros e brilhantes foram os dedos do outro. Foram eles que primeiro a tocaram ali, bem no centro da sua memória acordada, surgiram por detrás das árvores, encontraram a sua cara negra e farta e vagaram, se demoraram pegando, se entrançando em contas e estrelas, que cabelo mais bonito, meu Deus, parece princesa, Alaor percebeu, acossado pelo ciúme, confrontado ali repentinamente com o rival, transpirando humilhado e sofrendo na esquina como qualquer mortal ia ser capaz de algum desatino. Porém se deteve. Como poderia ser diferente?! Não seria mesmo o primeiro, tinha que se conformar. A nova vida de Marlene tinha que ser imantada por aquele outro ali, na espessa escuridão já postado. Marlene toda azul desses raios apenas parou e deixou. E a Lua entrou nela.
E se para muitos a Lua é bruxa, deusa, madrinha, mulher, para Marlene a Lua foi homem. Vinda de cima galante com a força estrondosa do Céu, resvalando nos galhos melados, senhor do mato rasteiro e de todas as ervas que se erguem milagrosas e suspirantes, penetrante, macio, amante e amigo a Lua conheceu Marlene antes de todos os homens.
.
Imagem: Marc Chagall. The Lovers in the Moonlight, 1938.
.
Para Olga.

11.10.07

Saudade de Andrômeda.

Um estrondo na noite, um imenso beijo sugado, tinha adormecido no vestíbulo sem notícias dele, procurava-o atordoada entre meandros melados, nos cabides peludos do inverno procurou uma saída, no fundo do armário sonhou ser sua e, se não tivesse já amedrontado desde as origens o costume de não se quebrar sinal vermelho, se temesse ainda a lenda terrena urbana e deflorada de se levar sozinha susto fatal, se não se soubesse enfim numa guerra civil já banal e destravada, teria afastado a colcha taquicárdica e como um robô espiado pela janela, como qualquer mortal, mas já era eterna.
Era noite funda, ela já sabia de onde vinha o som, apertou com as coxas a lembrança dele. Aconchegou o cobertor que ele de longe tinha batizado com um sêmem de saudade, agora ele era bálsamo, trigo, era um xale Seneca de memória e cura, ela só queria o Reino de Nárnia que se alcança pelo fundo do armário, queria saber o que há por baixo do lençol e atrás das portas, dos esconderijos ao se fugir de guerras. Mais tarde atravessou com naturalidade o corredor das sombras brincalhonas, deitou-se no chão espalhando almofadas de vigília. Tudo era sonho, alegria, pele. A cama descera fácil pela corda do andaime, picada em longas toras que lá embaixo poderiam virar berço, estrado, mesa de jantar para novos visitantes da cidade, ou outro tapume, uma fogueira, um banco para se sentar e espiar fogueiras, um caixão mas agora banco. Amor, meu grande amor, por favor me mande urgente uma caneta via Sedex, esperarei deitada no chão, não tenho mais cama, quero rolar e te encontrar nos cantos sem cabeceira, sem pé, com a caneta que pode ser Bic quero desenhar de novo os pontos cardeais, se eu puder escolher algum detalhe quero hidrográfica, quimera quilométrica, passada antes por sua mão, suada, que a tenha apertado, que seja anil, escancarado azul, da Prússia ou que venha cobalto resistente, de Céu, já sou somadas duas japonesas medievas.
De
lambuja um lápis, doçura paralela, rescendente a resina e mato, cedro e açafrão, rudeza perfumada, xilogravura terna, tatuagem, botão de flor. Vou apontar o lápis mentindo para mim mesma ser artesã de ofício, fantasma incorpóreo, mas sei de cor essas desculpas tolas todas medo do código Morse mais recente: dizer quem somos. A caneta era escondida, aflita, diva, desesperada e paz, pilastra de açúcar contemporânea, paliçada de verdades súbitas na esquina erguida, boiando acima dos entraves, rindo dos conclaves, clandestina, afoita, a caneta rindo em sangria deslizante como navio de papiro por espumas meio decifradas, esmaga bolhas de saudade, menos de um palmo e percorre um espasmo de galáxia, Andrômeda em choque com a via láctea e andrajosa, nem grossa nem fina, escalavrada como o ideograma da dor vencida, tomou-lhe as mãos como entidade sabe, condutora de desígnio na parede do templo a caneta era uma saga escavando um sal mouro de desgoverno e liberdade, rompeu o labirinto, ele, só ele, só ele cabe, lá no fundo a alma, na soleira a poça, só ele ele o corpo alongado em vela a lembrança dele acendeu nela com a caneta porque a vida quis a chama, na parede efêmera o amor inscreveu-se arfante, ele era a língua arcaica chegando ao fundo, ela o cimento insubmisso.
.

Na língua deste planeta ela podia chamar-se Feliz.

X81, fagulha verde, desceu da quarta estrela e avançou, mergulhou na água gelada e estremeceu, voltou à tona e olhou o Céu, tinha viajado nebulosas e galáxias, sacudiu a cabeça várias vezes para os lados e fiapos de luminosidade se eriçaram. Na língua deste planeta ela podia muito bem chamar-se Feliz. Etérea e tonta, ia salvar mais sonhos de se afogarem enquanto o grande vórtice violeta continuava a consumir o desvario da guerra.
Viu a abelha boiando no mar e entrou nela. Outra parte de si infiltrou-se no punhado de areia que logo se enxugou nas mãos do homem. Ele caminhou trôpego e pousou a abelha na amurada improvisada do hotel tentando salvá-la, sem saber que batizava a viajante do espaço. Algo do homem era vento e soprou. Uma asa da abelha que estava colada ao corpo soltou-se, o homem soprava macio para tentar curar a asa da abelha e para afastar aquele grão de areia dos olhos que agora eram de X81 também. De vento também, o homem não conseguia domar aquele grão que por si só talvez se mexesse indepentende do vento. E tudo o que seu sopro comovido poderia fazer era com um amor plasmático entregar a abelha ao dia, soltou-se dela e do destino de X81, fagulha verde e enternecida, o Sol ardia, cansado e também liberto por compreender a coisa toda de algum modo o homem se rendeu, tinha perdido tudo na guerra, a ânsia não, sentou-se e suspirou queixoso: ‘Queria tanto um amor'. Se acreditasse em Deus até pedia. Se queixou a deus nenhum e aquele som inédito de súplica intensa agitou X81 dentro da abelha, fagulha doce, o soldado suava, era brilhante, macio, ela enxergou células vivazes na pele morena castigada, sua voz possante enchia a praia, o grão rebelde se soltou do olho da abelha, X81 revoou o corpo do homem querendo aquela flor comprida e bela, ele se abanava, se estapeava rindo tentando afastar a abelha extasiada, na qual, por dentro, X81 se acomodava e retorcia um frêmito, ainda não conseguia contato, uma rajada que era nela inconsciente e sábia empurrou-a para os escombros onde a pin up exalava graça à beira-mar nos escombros onde tinha sido a cidadela turística; X81 esguichou-se da abelha, mirou a pin-up e se projetou, enfiou-se pelos olhos esgarçados da boneca pintada no outdoor esburacado, expandiu-se em fagulhas curiosas ocupando o oco do corpo estampado e chegando à abertura trêmula.
Agora sim. Tinha dado certo. Tinha um corpo de mulher e um coração de abelha. Ia saber melhor o que era aquilo. Ia experimentar a dor e o amor daquele novo destino. Humano.

imagem: Marc Chagall. The Promenade, 1917-18 . http://www.geocities.com/Paris/Parc/2331/russia/chagallgallery.html

6.5.07

Os príncipes e a princesa.

Lua cheia o que havia era cumprir o seu destino, enlouquecida, simples, pequena, farfalhava e ardia andando pela casa aprendendo a viver, a casa branca espiralada ao centro que agora comprava no mercado em substituição renitente à brochura boa. Pararam de fabricar os meus cadernos, ela se queixava, e eram tristes as aulas de Geografia, Onde se situam os desertos mais tórridos do mundo, senhorita de olhar perdido? Aqui. Bem no meu peito. E pelo papel lá vinha a outra, por todos os cantos vielas, romaria, danação para os seres, vinha e cantava lárálálá Como se fosse o Festival de Bagdá e não um reles caderno onde se juntavam resina e madrepérola, labirintos infinitos, era só se perder! Vinha como se houvesse mais do que quatro cantos na sala quando o viu, a sombra da tarde enrodilhada em seus cílios morenos de sanhaço mas ele era um monstro cruel e ela aprenderia sem cessar as surpresas da vida. Então ela gritou Mãe! Venha me salvar! Mãe venha depressa que sozinha eu não sei, sozinha eu não posso.
Era o seu primeiro homem.
A mãe lá na cozinha cantarolava lárálálálá Ela que era como a filha, uma odalisca azul. E o exaustor ligado, e abelhas pelo ar, e lembranças grudentas de ontem à noite, ah como foi bom. Logo tocou a campainha, era o seu Candinho com a sacola frouxa trazendo sei lá o que, que encomenda, que intriga, a mãe nem olhou, ouviu o grito da filha e o ouviria mesmo que o Candinho chegasse quinhentas vezes batendo tambor distorcendo de raiva a cara azeda nem um pouco arrependida das safadezas de vizinhança corroída. Mesmo que o Festival ensurdecesse a cozinha com sua orquestra de cítaras, de pétalas, de sinos de cristal.
Mesmo tudo. O grito claro do seu ventre escuro ela escutaria para além da morte, nunca se escutou grito pior, profundeza louca de caverna, a mãe vinha vindo mas pareceu um século, para ambas pareceu que eram mil e uma noites de terror e um túmulo. Mãe venha depressa.
Por que moramos em cadernos cheios de perigos e não em canteiros de cravos e hortaliças? A mãe da traça deplorava. Pois hei de vencer esse monstro, ora se hei! E amarrá-lo depois no pátio central para os suplícios.
O monstro olhava imóvel nos olhos dela, vai ver queria hipnotizá-la para depois dar o bote fatal, engolir seu corpo magrinho sem dó nem piedade, a pobre da traça não tinha feito nada ainda na vida, apertou o medo de morrer, morrer assim sem mais nem menos no meio de tudo, que tilintar de travessas, talheres de prata! Só farejara o banquete. Devia ser cedo ainda, bem cedo. Bem antes da hora, bem antes. Bem antes do amor, ah que pena. Que medo desgraçado de morrer sem conhecer o amor e a sua bocona aberta.
Morrer e virar traça penada no céu da raça. Sim. Porque haveria de voltar, inconformada com o fim voltaria enquanto existisse espelho e vaidade, Lua e estrelas, para viver mais um pouco puxaria a malha elástica que separa os mundos. Limite extremo e opaco dos mundos, por favor se esgarce um pouco para passar a traça pequena. Nem tinha provado o Aurélio ainda. Como ele era bonito e majestoso tamanho de faraó na estante, espremido mas altivo entre volumes aprumando o ventre, a mãe vinha vindo, de repente achou graça, pressentiu a ilusão da filha, diminuiu o passo. Que estranho. Monstro aqui? Que imaginação tem essa menina! Puxou a mim. Lárálálálálá Que orgulho.
Na estante o outro estava à mercê da luz do fim da tarde e suava. Como se tivesse cílios. Que estranho. Como se fosse um homem.
Mãe.
Ai.
Como se uivasse.
Tão pavoroso o seu tormento, menor que pulga a traça sofria, não conseguia mostrar o bicho, o fio de cabelo que formava o monstro terrível que a mãe domou com um golpe ligeiro puxando com a boca e sorrindo, desmanchando no ar erguendo como uma flor, um troféu, uma pipa de seda na praia, Que festa é essa no meu coração? Amor imenso sem fim triste. Agora olha. Olha o seu monstro, filha minha. Decomposto e humilhado. Olé!
E se a ilusão para sempre lhe tivesse amealhado espaços nos becos das gavetas, a traça pequena de nenhuma privação fatal por enquanto não de nada suspeitaria. Pois só existe o que se percebe, e era verão no meio do inverno, ela sofrendo já com os sustos de sua índole faceira e apaixonada, inspirou extasiada uma vaga brisa dos vapores da Primavera que se formava. E aí tola se riu, quase sabendo. De sua primeira infâmia e tolice de paixão.
.
Encontro com o dia. São Paulo, Rio Azul, 2006.
Imagem: Bunyip. Em construção.

9.10.06

Origem

Quando era pequena acreditava
que tinham me achado numa lata de lixo.

Me lembrava do luar,
amarelado por sobre a lata.
A companhia de gatos, cacos, papelão, carvão molhado.
Não me sentia órfã.
Não me perguntava se não tinha pais.
O luar da madrugada era a minha origem.
Eu brotara do lixo,
simplesmente.

Não me sentia ofendida
Mas fui grata à mulher e ao homem que passavam e me recolheram
Me alimentaram com leite
Me deram uma infância com árvores
Um quarto com uma telha de vidro no teto para deixar entrar a Lua
e eu nunca me esquecer de quem sou.
Todas as vezes em que me perdi
estive apenas distraída

Pensava que todas as crianças do mundo começam assim
Cogumelos, musgos, brotos de escuridão
Um dia descobertos e adotados por compaixão

Até hoje creio nisto.

.
imagem: cena do filme "Blade Runner" (O Caçador de Andróides); EUA,Ridley Scott,1982.

23.9.06

epitáfio


Aqui jazo eu
Pó enfeitiçado
Que me embriaguei de Sol e de Lua
e não sei o que me virei.
.
Nosso Ancestral é um rio azul, SP, Rio Azul, 2006.

3.9.06

Ele se lembrou de que há um dia em que os limites entre os mundos se esgarçam


Acordou sentindo a dor do mundo, do mundo inteiro embora seu coração estivesse preso do lado de dentro do muro vergonhoso. Olhou para os arredores em frangalhos e acariciou as lembranças do vilarejo, as casas bombardeadas dos parentes dos heróis, crianças correram esbaforidas e ele as reconheceu sem esforço, uma era ele mesmo, a pele ressecada e clareada pela areia na qual gostava de se enroscar como um cabrito com cócegas. A outra era Jade, a prima mais velha de olhos já brilhantes de uma futura explosão que espatifaria seu sorriso branco e o varreria para os quatro cantos. A outra era a pequena menina judia que por um poro do muro esburacado viu quando ele e a prima se roçaram. Se ele não se matasse e se ela chegasse a crescer, um dia ele e essa menina se apaixonariam e construiriam uma casa no lugar do muro.
Ele se agachou e aproximou o olho direito da pequena fenda. Antes de ver de novo a menina deu com um inseto engraçado que olhou prá ele com olhos minúsculos sonolentos. Eles pareciam se encaixar nas pupilas inquietas dos olhos da menina um pouco mais prá trás, eram dois pares de olhos saltados de curiosidade e susto, sonhos apertados e moléculas vivazes. Por fim se esconderam sob cílios negros que se agitavam como aranhas. A tarde palestina tinha um compasso metálico e traçava impiedosa circunferências fatídicas para os amores.
Ele se lembrou de que há um dia em que os limites entre os mundos se esgarçam, não se lembrou direito de quando seria, pensou que Alá permitiria que ele voltasse do Paraíso para encontrar-se com ela outra vez para rirem e dançarem num giro dervixe neste vão de muro que talvez seja o horizonte.
Olhou mais uma vez e a viu ao longe, ajustando a mochila nas costas e caminhando apressada, trágica e cansada demais para a idade, confundindo-se num instante com a fila tristonha do trânsito e sem saber se o futuro virá. Ele apertou o rosto no muro esmagando os olhos para tentar trazê-la de volta, espalmou a mão magra pelo poro do cimento que já era uma ferida grande e dolorida. Os dedos empoeirados fizeram um movimento desesperado empurrando os tijolos, depois desistiu e limpou as mãos nas roupas surradas.
Com os olhos do pequeno inseto e os da menina dentro das próprias órbitas, arredondou os ângulos sofridos dos quarteirões queridos e das lembranças de toda uma vida uma última terrena vez.
Decidido agachou-se e beijou a fenda no muro. Alguém tinha enfiado ali um pedaço de jornal amarfanhado mas entrava luz por uma fresta guerreira e ele enxergou, já pronto, coroando o seu destino, o turbante próximo iluminado de glória e de eternidade.
Abriu bem os olhos e apertou sem dó o botão da flor de todas as bombas bem em cima do seu jovem fígado apaixonado.
.
imagem:Qalandia Check Point, Ramallah, Palestine. Auxcouleursavenir's Fotothing. http://www.fotothing.com/auxcouleursavenir/photo/2645e4edf211af4e3e11ffde8e160127/

21.8.06

Coisas da Terra

(Chagall1931)

Tição ficou desnorteado quando ouviu o comentário. Então ele ia voltar, o maldito?? Ia voltar e Branca ia ficar louca por ele, que dúvida. Ela adorava astros.
Ia se apaixonar por ele, como tinha acontecido já com tantas outras, que de tanta paixão e de tanto susto perderam o rumo, afogaram o trote, descabelaram-se inteiras.
Por que a Natureza era tão injusta? Tição muito revoltado olhou para o Céu. Tinha que ter uma boa idéia depressa. Temeu que a notícia chegasse aos ouvidos dela antes de ter enraizado nela o seu amor. Então resolveu convidá-la para uma longa viagem ao redor do mundo, esperançoso de que, em outros lugares, houvesse outros assuntos menos perigosos.
Branca adorou a idéia, começou a arrumar as malas. Que romântico. Fazia tempo que você não tinha gestos delicados. Fazia tempo que você não ligava pra mim. Enquanto escolhia a lingerie mais bonita, achou que ele apesar de tudo ainda merecia um coice. Eu quase ia me apaixonando por outro, Tição. Bem que você merecia.

Tição ficou vermelho de raiva, de ciúme, de pequenez. Mas ainda havia de dar tempo de impressionar aquela fêmea bonita.
Meu Deus, me ajude, ele pediu desesperado e humilde, descobrindo que não era mais ateu. Na saída da cidade deram de cara com a tabuleta: “Bem-vindo, grande astro!”
O Astro?! Ele por ali também? Branca ainda não sabia que ele vinha. Que astro é esse, Tição? Ah Um campeão de pólo que vem lá de onde Judas perdeu as botas, pra disputar o troféu Fogo no Mato, ele mentiu inseguro e trêmulo. Você não ouviu falar do campeonato?
Não. Branca disfarçou, ficou desmoralizada e isso foi a salvação, o assunto morreu ali mesmo. É melhor você ficar aqui enquanto saio para comprar jornais, Tição falou assim que se fecharam no quarto de hotel em Paris. Não liga a televisão, pode piorar a sua dor de cabeça. Promete? Fica aqui pensando em mim e esquece o mundo lá fora?
Vai logo, Tição. Estou louca pra você voltar.
Na banca de jornais ele sentiu tontura. Não é que os franceses, nas primeiras páginas, também saudavam o astro? O que tinha adiantado fugir de Romaria? Se até em Paris ele passaria, e, o que é pior: passaria antes!
Tição voltou correndo esbarrando nas pessoas. Cavalo! Xingou um francês em francês. Não olha por onde anda?!! O que este cara está pensando? Cavalo.

Tição escolheu flores do campo, entremeou-as com eucalipto. Assim Branca ia ver que ele não se esquecia do primeiro encontro dos dois num bosque em tempos idos.
Quanto tempo perdi, lamentou. Não fiz nada de notável na vida. Agora ele chega e ela vai querer o outro apesar das minhas flores, afinal ele é um astro e eu não sou, sou só um burro, um cavalo que não olha por onde anda! Sentiu mais tontura ainda e continuou correndo.
Eu não liguei a televisão, querido. Mas jornal eu quero ler. O que está acontecendo por aqui?
Nada que preste, ma Blanche. Eu trouxe flores, você não prefere?
E a olhou com tanto amor e desejo que o coração dela disparou. E ela aceitou brincar de não saber de nada, de andar de olhos vendados pelas ruas de Paris, Milão, Bruxelas, de Todavia. E assim foi a viagem toda, ela conhecendo as paragens só pelo sopro do vento nas pálpebras e pela crina firme de Tição levando-a como um braço.
Algum tempo depois eles voltariam a Romaria. Os homens tinham comprado esporas novas e as mulheres renovavam seus votos de ciganas encompridando as saias com lantejoulas e rendas.
Não tem jeito mesmo, ele vai chegar, ela vai vê-lo, vai se apaixonar por ele e eu vou ficar de casco furado. Droga de vida.
Olha o cometa, Tição! Parece mesmo a estrela dos Reis Magos! Mas acho que minha avó exagerou. Ele está meio embaçado. Nem dá pra ver direito o rabo dele. Não acho ele essas coisas não. Eu não me jogaria no lago por causa dele. Mas por você eu cruzaria os Céus.
Tição ficou tão feliz que teve vontade de relinchar. Ficou esperando, o coração aos pulos, o cérebro quebrando estacas. A noite toda não aconteceu. Ela não se referiu nenhuma vez ao Halley com entusiasmo. Na noite seguinte, quando os habitantes de Romaria olhavam o Céu de luneta, ele convidou Branca para continuar com ele a raça deles. Vão ter um filho valente, que um dia vai ganhar o Troféu Fogo no Mato de Pólo de Romaria.

.
Mosteiro Zen Morro da Vargem, Ibiraçu, ES. Passagem do Cometa Halley pela Terra, 1986.
Para as crianças de Ibiraçu, súbito grupo de teatro da chuva. Pedimos com tanta força que choveu.
Para a família Paggiola, que me ajudou a subir o morro.

Coisas da Terra. Conto de amor para crianças. São Paulo, Revista Balde Branco, março de 86.