6.5.07

Os príncipes e a princesa.

Lua cheia o que havia era cumprir o seu destino, enlouquecida, simples, pequena, farfalhava e ardia andando pela casa aprendendo a viver, a casa branca espiralada ao centro que agora comprava no mercado em substituição renitente à brochura boa. Pararam de fabricar os meus cadernos, ela se queixava, e eram tristes as aulas de Geografia, Onde se situam os desertos mais tórridos do mundo, senhorita de olhar perdido? Aqui. Bem no meu peito. E pelo papel lá vinha a outra, por todos os cantos vielas, romaria, danação para os seres, vinha e cantava lárálálá Como se fosse o Festival de Bagdá e não um reles caderno onde se juntavam resina e madrepérola, labirintos infinitos, era só se perder! Vinha como se houvesse mais do que quatro cantos na sala quando o viu, a sombra da tarde enrodilhada em seus cílios morenos de sanhaço mas ele era um monstro cruel e ela aprenderia sem cessar as surpresas da vida. Então ela gritou Mãe! Venha me salvar! Mãe venha depressa que sozinha eu não sei, sozinha eu não posso.
Era o seu primeiro homem.
A mãe lá na cozinha cantarolava lárálálálá Ela que era como a filha, uma odalisca azul. E o exaustor ligado, e abelhas pelo ar, e lembranças grudentas de ontem à noite, ah como foi bom. Logo tocou a campainha, era o seu Candinho com a sacola frouxa trazendo sei lá o que, que encomenda, que intriga, a mãe nem olhou, ouviu o grito da filha e o ouviria mesmo que o Candinho chegasse quinhentas vezes batendo tambor distorcendo de raiva a cara azeda nem um pouco arrependida das safadezas de vizinhança corroída. Mesmo que o Festival ensurdecesse a cozinha com sua orquestra de cítaras, de pétalas, de sinos de cristal.
Mesmo tudo. O grito claro do seu ventre escuro ela escutaria para além da morte, nunca se escutou grito pior, profundeza louca de caverna, a mãe vinha vindo mas pareceu um século, para ambas pareceu que eram mil e uma noites de terror e um túmulo. Mãe venha depressa.
Por que moramos em cadernos cheios de perigos e não em canteiros de cravos e hortaliças? A mãe da traça deplorava. Pois hei de vencer esse monstro, ora se hei! E amarrá-lo depois no pátio central para os suplícios.
O monstro olhava imóvel nos olhos dela, vai ver queria hipnotizá-la para depois dar o bote fatal, engolir seu corpo magrinho sem dó nem piedade, a pobre da traça não tinha feito nada ainda na vida, apertou o medo de morrer, morrer assim sem mais nem menos no meio de tudo, que tilintar de travessas, talheres de prata! Só farejara o banquete. Devia ser cedo ainda, bem cedo. Bem antes da hora, bem antes. Bem antes do amor, ah que pena. Que medo desgraçado de morrer sem conhecer o amor e a sua bocona aberta.
Morrer e virar traça penada no céu da raça. Sim. Porque haveria de voltar, inconformada com o fim voltaria enquanto existisse espelho e vaidade, Lua e estrelas, para viver mais um pouco puxaria a malha elástica que separa os mundos. Limite extremo e opaco dos mundos, por favor se esgarce um pouco para passar a traça pequena. Nem tinha provado o Aurélio ainda. Como ele era bonito e majestoso tamanho de faraó na estante, espremido mas altivo entre volumes aprumando o ventre, a mãe vinha vindo, de repente achou graça, pressentiu a ilusão da filha, diminuiu o passo. Que estranho. Monstro aqui? Que imaginação tem essa menina! Puxou a mim. Lárálálálálá Que orgulho.
Na estante o outro estava à mercê da luz do fim da tarde e suava. Como se tivesse cílios. Que estranho. Como se fosse um homem.
Mãe.
Ai.
Como se uivasse.
Tão pavoroso o seu tormento, menor que pulga a traça sofria, não conseguia mostrar o bicho, o fio de cabelo que formava o monstro terrível que a mãe domou com um golpe ligeiro puxando com a boca e sorrindo, desmanchando no ar erguendo como uma flor, um troféu, uma pipa de seda na praia, Que festa é essa no meu coração? Amor imenso sem fim triste. Agora olha. Olha o seu monstro, filha minha. Decomposto e humilhado. Olé!
E se a ilusão para sempre lhe tivesse amealhado espaços nos becos das gavetas, a traça pequena de nenhuma privação fatal por enquanto não de nada suspeitaria. Pois só existe o que se percebe, e era verão no meio do inverno, ela sofrendo já com os sustos de sua índole faceira e apaixonada, inspirou extasiada uma vaga brisa dos vapores da Primavera que se formava. E aí tola se riu, quase sabendo. De sua primeira infâmia e tolice de paixão.
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Encontro com o dia. São Paulo, Rio Azul, 2006.
Imagem: Bunyip. Em construção.

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