11.10.07

Saudade de Andrômeda.

Um estrondo na noite, um imenso beijo sugado, tinha adormecido no vestíbulo sem notícias dele, procurava-o atordoada entre meandros melados, nos cabides peludos do inverno procurou uma saída, no fundo do armário sonhou ser sua e, se não tivesse já amedrontado desde as origens o costume de não se quebrar sinal vermelho, se temesse ainda a lenda terrena urbana e deflorada de se levar sozinha susto fatal, se não se soubesse enfim numa guerra civil já banal e destravada, teria afastado a colcha taquicárdica e como um robô espiado pela janela, como qualquer mortal, mas já era eterna.
Era noite funda, ela já sabia de onde vinha o som, apertou com as coxas a lembrança dele. Aconchegou o cobertor que ele de longe tinha batizado com um sêmem de saudade, agora ele era bálsamo, trigo, era um xale Seneca de memória e cura, ela só queria o Reino de Nárnia que se alcança pelo fundo do armário, queria saber o que há por baixo do lençol e atrás das portas, dos esconderijos ao se fugir de guerras. Mais tarde atravessou com naturalidade o corredor das sombras brincalhonas, deitou-se no chão espalhando almofadas de vigília. Tudo era sonho, alegria, pele. A cama descera fácil pela corda do andaime, picada em longas toras que lá embaixo poderiam virar berço, estrado, mesa de jantar para novos visitantes da cidade, ou outro tapume, uma fogueira, um banco para se sentar e espiar fogueiras, um caixão mas agora banco. Amor, meu grande amor, por favor me mande urgente uma caneta via Sedex, esperarei deitada no chão, não tenho mais cama, quero rolar e te encontrar nos cantos sem cabeceira, sem pé, com a caneta que pode ser Bic quero desenhar de novo os pontos cardeais, se eu puder escolher algum detalhe quero hidrográfica, quimera quilométrica, passada antes por sua mão, suada, que a tenha apertado, que seja anil, escancarado azul, da Prússia ou que venha cobalto resistente, de Céu, já sou somadas duas japonesas medievas.
De
lambuja um lápis, doçura paralela, rescendente a resina e mato, cedro e açafrão, rudeza perfumada, xilogravura terna, tatuagem, botão de flor. Vou apontar o lápis mentindo para mim mesma ser artesã de ofício, fantasma incorpóreo, mas sei de cor essas desculpas tolas todas medo do código Morse mais recente: dizer quem somos. A caneta era escondida, aflita, diva, desesperada e paz, pilastra de açúcar contemporânea, paliçada de verdades súbitas na esquina erguida, boiando acima dos entraves, rindo dos conclaves, clandestina, afoita, a caneta rindo em sangria deslizante como navio de papiro por espumas meio decifradas, esmaga bolhas de saudade, menos de um palmo e percorre um espasmo de galáxia, Andrômeda em choque com a via láctea e andrajosa, nem grossa nem fina, escalavrada como o ideograma da dor vencida, tomou-lhe as mãos como entidade sabe, condutora de desígnio na parede do templo a caneta era uma saga escavando um sal mouro de desgoverno e liberdade, rompeu o labirinto, ele, só ele, só ele cabe, lá no fundo a alma, na soleira a poça, só ele ele o corpo alongado em vela a lembrança dele acendeu nela com a caneta porque a vida quis a chama, na parede efêmera o amor inscreveu-se arfante, ele era a língua arcaica chegando ao fundo, ela o cimento insubmisso.
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Na língua deste planeta ela podia chamar-se Feliz.

X81, fagulha verde, desceu da quarta estrela e avançou, mergulhou na água gelada e estremeceu, voltou à tona e olhou o Céu, tinha viajado nebulosas e galáxias, sacudiu a cabeça várias vezes para os lados e fiapos de luminosidade se eriçaram. Na língua deste planeta ela podia muito bem chamar-se Feliz. Etérea e tonta, ia salvar mais sonhos de se afogarem enquanto o grande vórtice violeta continuava a consumir o desvario da guerra.
Viu a abelha boiando no mar e entrou nela. Outra parte de si infiltrou-se no punhado de areia que logo se enxugou nas mãos do homem. Ele caminhou trôpego e pousou a abelha na amurada improvisada do hotel tentando salvá-la, sem saber que batizava a viajante do espaço. Algo do homem era vento e soprou. Uma asa da abelha que estava colada ao corpo soltou-se, o homem soprava macio para tentar curar a asa da abelha e para afastar aquele grão de areia dos olhos que agora eram de X81 também. De vento também, o homem não conseguia domar aquele grão que por si só talvez se mexesse indepentende do vento. E tudo o que seu sopro comovido poderia fazer era com um amor plasmático entregar a abelha ao dia, soltou-se dela e do destino de X81, fagulha verde e enternecida, o Sol ardia, cansado e também liberto por compreender a coisa toda de algum modo o homem se rendeu, tinha perdido tudo na guerra, a ânsia não, sentou-se e suspirou queixoso: ‘Queria tanto um amor'. Se acreditasse em Deus até pedia. Se queixou a deus nenhum e aquele som inédito de súplica intensa agitou X81 dentro da abelha, fagulha doce, o soldado suava, era brilhante, macio, ela enxergou células vivazes na pele morena castigada, sua voz possante enchia a praia, o grão rebelde se soltou do olho da abelha, X81 revoou o corpo do homem querendo aquela flor comprida e bela, ele se abanava, se estapeava rindo tentando afastar a abelha extasiada, na qual, por dentro, X81 se acomodava e retorcia um frêmito, ainda não conseguia contato, uma rajada que era nela inconsciente e sábia empurrou-a para os escombros onde a pin up exalava graça à beira-mar nos escombros onde tinha sido a cidadela turística; X81 esguichou-se da abelha, mirou a pin-up e se projetou, enfiou-se pelos olhos esgarçados da boneca pintada no outdoor esburacado, expandiu-se em fagulhas curiosas ocupando o oco do corpo estampado e chegando à abertura trêmula.
Agora sim. Tinha dado certo. Tinha um corpo de mulher e um coração de abelha. Ia saber melhor o que era aquilo. Ia experimentar a dor e o amor daquele novo destino. Humano.

imagem: Marc Chagall. The Promenade, 1917-18 . http://www.geocities.com/Paris/Parc/2331/russia/chagallgallery.html

6.5.07

Os príncipes e a princesa.

Lua cheia o que havia era cumprir o seu destino, enlouquecida, simples, pequena, farfalhava e ardia andando pela casa aprendendo a viver, a casa branca espiralada ao centro que agora comprava no mercado em substituição renitente à brochura boa. Pararam de fabricar os meus cadernos, ela se queixava, e eram tristes as aulas de Geografia, Onde se situam os desertos mais tórridos do mundo, senhorita de olhar perdido? Aqui. Bem no meu peito. E pelo papel lá vinha a outra, por todos os cantos vielas, romaria, danação para os seres, vinha e cantava lárálálá Como se fosse o Festival de Bagdá e não um reles caderno onde se juntavam resina e madrepérola, labirintos infinitos, era só se perder! Vinha como se houvesse mais do que quatro cantos na sala quando o viu, a sombra da tarde enrodilhada em seus cílios morenos de sanhaço mas ele era um monstro cruel e ela aprenderia sem cessar as surpresas da vida. Então ela gritou Mãe! Venha me salvar! Mãe venha depressa que sozinha eu não sei, sozinha eu não posso.
Era o seu primeiro homem.
A mãe lá na cozinha cantarolava lárálálálá Ela que era como a filha, uma odalisca azul. E o exaustor ligado, e abelhas pelo ar, e lembranças grudentas de ontem à noite, ah como foi bom. Logo tocou a campainha, era o seu Candinho com a sacola frouxa trazendo sei lá o que, que encomenda, que intriga, a mãe nem olhou, ouviu o grito da filha e o ouviria mesmo que o Candinho chegasse quinhentas vezes batendo tambor distorcendo de raiva a cara azeda nem um pouco arrependida das safadezas de vizinhança corroída. Mesmo que o Festival ensurdecesse a cozinha com sua orquestra de cítaras, de pétalas, de sinos de cristal.
Mesmo tudo. O grito claro do seu ventre escuro ela escutaria para além da morte, nunca se escutou grito pior, profundeza louca de caverna, a mãe vinha vindo mas pareceu um século, para ambas pareceu que eram mil e uma noites de terror e um túmulo. Mãe venha depressa.
Por que moramos em cadernos cheios de perigos e não em canteiros de cravos e hortaliças? A mãe da traça deplorava. Pois hei de vencer esse monstro, ora se hei! E amarrá-lo depois no pátio central para os suplícios.
O monstro olhava imóvel nos olhos dela, vai ver queria hipnotizá-la para depois dar o bote fatal, engolir seu corpo magrinho sem dó nem piedade, a pobre da traça não tinha feito nada ainda na vida, apertou o medo de morrer, morrer assim sem mais nem menos no meio de tudo, que tilintar de travessas, talheres de prata! Só farejara o banquete. Devia ser cedo ainda, bem cedo. Bem antes da hora, bem antes. Bem antes do amor, ah que pena. Que medo desgraçado de morrer sem conhecer o amor e a sua bocona aberta.
Morrer e virar traça penada no céu da raça. Sim. Porque haveria de voltar, inconformada com o fim voltaria enquanto existisse espelho e vaidade, Lua e estrelas, para viver mais um pouco puxaria a malha elástica que separa os mundos. Limite extremo e opaco dos mundos, por favor se esgarce um pouco para passar a traça pequena. Nem tinha provado o Aurélio ainda. Como ele era bonito e majestoso tamanho de faraó na estante, espremido mas altivo entre volumes aprumando o ventre, a mãe vinha vindo, de repente achou graça, pressentiu a ilusão da filha, diminuiu o passo. Que estranho. Monstro aqui? Que imaginação tem essa menina! Puxou a mim. Lárálálálálá Que orgulho.
Na estante o outro estava à mercê da luz do fim da tarde e suava. Como se tivesse cílios. Que estranho. Como se fosse um homem.
Mãe.
Ai.
Como se uivasse.
Tão pavoroso o seu tormento, menor que pulga a traça sofria, não conseguia mostrar o bicho, o fio de cabelo que formava o monstro terrível que a mãe domou com um golpe ligeiro puxando com a boca e sorrindo, desmanchando no ar erguendo como uma flor, um troféu, uma pipa de seda na praia, Que festa é essa no meu coração? Amor imenso sem fim triste. Agora olha. Olha o seu monstro, filha minha. Decomposto e humilhado. Olé!
E se a ilusão para sempre lhe tivesse amealhado espaços nos becos das gavetas, a traça pequena de nenhuma privação fatal por enquanto não de nada suspeitaria. Pois só existe o que se percebe, e era verão no meio do inverno, ela sofrendo já com os sustos de sua índole faceira e apaixonada, inspirou extasiada uma vaga brisa dos vapores da Primavera que se formava. E aí tola se riu, quase sabendo. De sua primeira infâmia e tolice de paixão.
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Encontro com o dia. São Paulo, Rio Azul, 2006.
Imagem: Bunyip. Em construção.