21.8.06

Coisas da Terra

(Chagall1931)

Tição ficou desnorteado quando ouviu o comentário. Então ele ia voltar, o maldito?? Ia voltar e Branca ia ficar louca por ele, que dúvida. Ela adorava astros.
Ia se apaixonar por ele, como tinha acontecido já com tantas outras, que de tanta paixão e de tanto susto perderam o rumo, afogaram o trote, descabelaram-se inteiras.
Por que a Natureza era tão injusta? Tição muito revoltado olhou para o Céu. Tinha que ter uma boa idéia depressa. Temeu que a notícia chegasse aos ouvidos dela antes de ter enraizado nela o seu amor. Então resolveu convidá-la para uma longa viagem ao redor do mundo, esperançoso de que, em outros lugares, houvesse outros assuntos menos perigosos.
Branca adorou a idéia, começou a arrumar as malas. Que romântico. Fazia tempo que você não tinha gestos delicados. Fazia tempo que você não ligava pra mim. Enquanto escolhia a lingerie mais bonita, achou que ele apesar de tudo ainda merecia um coice. Eu quase ia me apaixonando por outro, Tição. Bem que você merecia.

Tição ficou vermelho de raiva, de ciúme, de pequenez. Mas ainda havia de dar tempo de impressionar aquela fêmea bonita.
Meu Deus, me ajude, ele pediu desesperado e humilde, descobrindo que não era mais ateu. Na saída da cidade deram de cara com a tabuleta: “Bem-vindo, grande astro!”
O Astro?! Ele por ali também? Branca ainda não sabia que ele vinha. Que astro é esse, Tição? Ah Um campeão de pólo que vem lá de onde Judas perdeu as botas, pra disputar o troféu Fogo no Mato, ele mentiu inseguro e trêmulo. Você não ouviu falar do campeonato?
Não. Branca disfarçou, ficou desmoralizada e isso foi a salvação, o assunto morreu ali mesmo. É melhor você ficar aqui enquanto saio para comprar jornais, Tição falou assim que se fecharam no quarto de hotel em Paris. Não liga a televisão, pode piorar a sua dor de cabeça. Promete? Fica aqui pensando em mim e esquece o mundo lá fora?
Vai logo, Tição. Estou louca pra você voltar.
Na banca de jornais ele sentiu tontura. Não é que os franceses, nas primeiras páginas, também saudavam o astro? O que tinha adiantado fugir de Romaria? Se até em Paris ele passaria, e, o que é pior: passaria antes!
Tição voltou correndo esbarrando nas pessoas. Cavalo! Xingou um francês em francês. Não olha por onde anda?!! O que este cara está pensando? Cavalo.

Tição escolheu flores do campo, entremeou-as com eucalipto. Assim Branca ia ver que ele não se esquecia do primeiro encontro dos dois num bosque em tempos idos.
Quanto tempo perdi, lamentou. Não fiz nada de notável na vida. Agora ele chega e ela vai querer o outro apesar das minhas flores, afinal ele é um astro e eu não sou, sou só um burro, um cavalo que não olha por onde anda! Sentiu mais tontura ainda e continuou correndo.
Eu não liguei a televisão, querido. Mas jornal eu quero ler. O que está acontecendo por aqui?
Nada que preste, ma Blanche. Eu trouxe flores, você não prefere?
E a olhou com tanto amor e desejo que o coração dela disparou. E ela aceitou brincar de não saber de nada, de andar de olhos vendados pelas ruas de Paris, Milão, Bruxelas, de Todavia. E assim foi a viagem toda, ela conhecendo as paragens só pelo sopro do vento nas pálpebras e pela crina firme de Tição levando-a como um braço.
Algum tempo depois eles voltariam a Romaria. Os homens tinham comprado esporas novas e as mulheres renovavam seus votos de ciganas encompridando as saias com lantejoulas e rendas.
Não tem jeito mesmo, ele vai chegar, ela vai vê-lo, vai se apaixonar por ele e eu vou ficar de casco furado. Droga de vida.
Olha o cometa, Tição! Parece mesmo a estrela dos Reis Magos! Mas acho que minha avó exagerou. Ele está meio embaçado. Nem dá pra ver direito o rabo dele. Não acho ele essas coisas não. Eu não me jogaria no lago por causa dele. Mas por você eu cruzaria os Céus.
Tição ficou tão feliz que teve vontade de relinchar. Ficou esperando, o coração aos pulos, o cérebro quebrando estacas. A noite toda não aconteceu. Ela não se referiu nenhuma vez ao Halley com entusiasmo. Na noite seguinte, quando os habitantes de Romaria olhavam o Céu de luneta, ele convidou Branca para continuar com ele a raça deles. Vão ter um filho valente, que um dia vai ganhar o Troféu Fogo no Mato de Pólo de Romaria.

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Mosteiro Zen Morro da Vargem, Ibiraçu, ES. Passagem do Cometa Halley pela Terra, 1986.
Para as crianças de Ibiraçu, súbito grupo de teatro da chuva. Pedimos com tanta força que choveu.
Para a família Paggiola, que me ajudou a subir o morro.

Coisas da Terra. Conto de amor para crianças. São Paulo, Revista Balde Branco, março de 86.

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