17.4.09

Meus pedaços içados

Tudo escuro e aquilo no Céu, cheio de luz, redondo, espiando, Marlene amoleceu, despencou atrás da mureta vencida como uma folha de plátano cai, ficou toda arranhada, plantavam aquilo espinhudo pra espetar ladrão que pulasse, ela por acaso tinha culpa se aqui em São Paulo não tinha tido nunca tempo de olhar à noite para cima? O Sol Marlene via. Quando ia de dia lá fora nos fundos estender a cueca do Alaor. Falavam que não era bom olhar assim direto de frente para o Sol que estraga os olhos, mas ela gostava de olhar, depois de uns instantes olhando direto o Sol começava a girar bem depressa, uma sobrinha do Alaor disse que quem vê o Sol rodando assim rápido foi escolhido por Deus, é diferente, vidente, Nossa Senhora há de vir para uma pessoa assim santa e avisar de uma guerra que vai acabar com o mundo, ai meu Deus uma guerra final! Profecia,Torrinha! Antes do fim do mundo meu Deus, meu bom Deus meu Jesus me ajuda a voltar pra Torrinha, preciso agarrar minha mãe bem juntinho, procurar o meu pai, encontrar meus irmãos, conhecer mais parentes, rolar no gramado alegre antes da bomba estragar, sentir de novo na pele o orvalho e o mato que pica, se acabar abraçada com os patos. De lambuja, o amor. Ai, meu Deus. Escrava dos outros já era. Ia então morrer deste jeito? Sempre a vida inteira e somente empregada? Que vida mais besta eu tive na Terra, Alaor. Marlene entrava e o Sol ia junto, continuava na cabeça por baixo dos olhos, no fogão na geladeira na mesa na sala no quarto na parede na cara do Alaor, grudava em tudo, na jarra, duvido que a jarra tenha mesmo vindo do Minho, exibidos eles eram. A Lua Marlene só tinha visto de cabaça, escura assim não, Lua preta? Que Lua é esta, afinal? Marlene estendeu a manta no chão e deitou, pôs-se a espiar do vitrô o pedaço do Céu azul recortado, ela que viveu espremida, humilhada, impedida em cantos bem tristes nas casas dos outros, em becos de solidão, de cimento, timidez, desespero, umidade, abriu os olhos, sonhou, viajou pelo espaço cantando, a alma corrigindo o seu comprido degredo encheu-se de espanto e visões, fez amizade com andorinhas e com o silêncio mais fundo das nuvens em corcéis, passou a se esvaziar da fome da comida daquela casa de estranhos, deixava a porta aberta e a Lua entrava. Lua Lua Lua Marlene ia precisando só da Lua Lua Lua comia e bebia daqueles raios azuis, grãos de prata, agora sabia que podia se guiar por ela, distinguir suas caras, pedir direção. A África, Lua, onde é? Minha Nossa Senhora da Aparecida, minha Mãe Preta, me mostra onde é.
Marlene pressentiu que a rua era larga, quilômetros esperavam sua simples ousadia. Farejou Alaor bem vivo, dando volta no jardim, podia enxergar tudo sem acender vela ou lanterna, sem ter medo nem do medo, nem de mais nada, viu quando Alaor a cobiçou de cima da laje, seus dois olhos ardentes de gato tramando livre paciente, conversaram de longe só de prumo sem dizerem palavra; Perdizes, eu quero é a África, adeus. Nunca mais, nunca mais, nunca mais essa casa dos outros, só Deus!
Seguiam o rastro da Lua. Faróis acenderam mais olhos de gatos. Alaor abotoou no seu braço a pulseira e beijou: Pode usar, viu, Marlene, não é perigoso. Ninguém vai roubar. Não é de ouro. É latinha.
A noite ardia, com a pulseira feito aliança Marlene reluziu. África remota?! Já sei! Já sei o que é! Agora eu vou é ser negra, Alaor. Ah. E foi.
Marlene foi e o seu regaço era pura água da fonte, escorria. Mas antes de Alaor chegar com aquela boca enorme, aquela alma dele danada de perguntar sobre tudo o que ela tinha travado no peito desde sempre esperando, tudo o que até hoje nunca mais ninguém quis nem tampouco escutou, O que tem mesmo Torrinha, Marlene? Me conta do jardim, me fala dos patos. Do trono de Ginga, de Nena, bem morta no caminhão de laranjas tombado, me conta da imagem da santa partida, do lago, da bomba, do fim do mundo, do sonho. Torrinha...
Negros e brilhantes foram os dedos do outro. Foram eles que primeiro a tocaram ali, bem no centro da sua memória acordada, surgiram por detrás das árvores, encontraram a sua cara negra e farta e vagaram, se demoraram pegando, se entrançando em contas e estrelas, que cabelo mais bonito, meu Deus, parece princesa, Alaor percebeu, acossado pelo ciúme, confrontado ali repentinamente com o rival, transpirando humilhado e sofrendo na esquina como qualquer mortal ia ser capaz de algum desatino. Porém se deteve. Como poderia ser diferente?! Não seria mesmo o primeiro, tinha que se conformar. A nova vida de Marlene tinha que ser imantada por aquele outro ali, na espessa escuridão já postado. Marlene toda azul desses raios apenas parou e deixou. E a Lua entrou nela.
E se para muitos a Lua é bruxa, deusa, madrinha, mulher, para Marlene a Lua foi homem. Vinda de cima galante com a força estrondosa do Céu, resvalando nos galhos melados, senhor do mato rasteiro e de todas as ervas que se erguem milagrosas e suspirantes, penetrante, macio, amante e amigo a Lua conheceu Marlene antes de todos os homens.
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Imagem: Marc Chagall. The Lovers in the Moonlight, 1938.
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Para Olga.

Um comentário:

Otávio M. Silva disse...

Adorei o Post, Parabens; Vou vir mais vezes por aqui.
Dá um passada no meu blog quando puder.
http://otaviomsilva.blogspot.com/
¬¬°ºoO
Forte Abraço